Ricardo Oliveira, de Várzea Alegre (CE)

 

Novo personagem da série que marca os 10 anos da OBMEP lutou pelo direito de frequentar uma escola, foi cinco vezes medalhista de ouro da OBMEP e hoje está estudando Mecatrônica, em Cedro.


Em Várzea Alegre, interior do Ceará, nasceu Ricardo Oliveira - mais especificamente em Vacaria, área rural deste município que não chega a contabilizar um habitante por quilômetro quadrado. E foi justamente a partir desse pedacinho do Ceará que o jovem conquistou fama em todo o país em 2006, quando participou pela primeira vez da Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas (OBMEP) e ganhou uma medalha de ouro.
 
Na primeira fase, que reuniu 14 milhões de estudantes, ele acertou 17 das 20 questões. O feito se torna ainda mais incrível quando se descobre que, até os 17 anos, Ricardo estudou sob a orientação dos pais - agricultores que viviam de plantação para subsistência - e do irmão mais velho, Ronildo de Oliveira, tudo com uma boa dose de autodidatismo.
 
- Mesmo já tendo algum conhecimento, eu era considerado analfabeto, porque não tinha um documento dizendo que eu sabia das coisas – diz.
 
A Escola Municipal Joaquim Alves de Oliveira não era tão longe, mas o que o manteve fora de seus muros não foi a distância de um quilômetro até o sítio da família. Ricardo tem amiotrofia espinhal, e a cadeira de rodas não passava pela estrada de terra esburacada que levava ao colégio. Nos períodos de chuva, a pequena propriedade da família ficava praticamente incomunicável. Mas quem disse que uma cadeira de rodas é limitação para esse rapaz cheio de garra e vontade de aprender? Considerado “analfabeto funcional” até 2005 por não ter frequentado uma instituição de ensino, depois de anos procurando ajuda, Ricardo teve seus pedidos atendidos quando a diretora bateu em sua porta.
 
Pescando alunos
 
Ao ser empossada diretora em 2006, Erileusa Gomes recebeu dos gestores municipais a difícil tarefa de reduzir a evasão escolar que então rondava o nível de 15%.
 
- Pedi aos professores que me indicassem os meninos que eles sabiam estar fora da escola. Uma professora de português me contou a história do Ricardo, que eu não conhecia - lembra a docente.
 
Após a família muito pedir à secretaria estadual de educação, o menino realizou uma prova de validação do conhecimento em 2005 e se tornou apto a cursar o sexto ano. No entanto, um ano depois, quando Erileusa apareceu em sua porta, ele permanecia sem matrícula.
 
Aos poucos Erileusa foi sabendo mais sobre o garoto que os demais professores contavam ser “muito inteligente, mas que nunca tinha frequentado a escola”. Quando convidou o rapaz a se matricular, ouviu prontamente dele: “meu sonho é estudar”.
 
- Naquela época, ninguém conhecia meu potencial, nem mesmo eu, que me sentia apenas mais um número nas estatísticas de evasão escolar – diz Ricardo.
 
A gestora explicou que não havia transporte escolar disponível todos os dias e que, portanto, as aulas seriam dadas em casa, com visitas semanais dos professores e dela própria.
 
- Foi como um ensino à distância, só que sem internet - brinca a pedagoga.
 
Ricardo ia à escola apenas para realizar provas, o que era mais do que suficiente para deixá-lo feliz. Nos dias em que tinha de ir ao colégio, sentava-se sem reclamar no carrinho de mão do pai para fazer o trajeto.
 
- Ele nasceu na família certa, porque muitas vezes a gente sinaliza sintomas de dificuldade de aprendizado que podem ter um fundo psicológico e os pais negligenciam. A família de Ricardo reconhecia o problema, mas o enfrentava, não o tratava como uma deficiência. Nunca vi seus pais tratarem os dois filhos de forma diferente um do outro - derrama-se em elogios a educadora. E completa dizendo que, se o rapaz hoje é bom com os números, o mérito é da mãe, Dona Francisca.
 
- Foi sua primeira professora; ela que o alfabetizou em casa mesmo. Mesmo quando as escolas não se interessaram, ela acreditou e estimulou o filho a estudar.
 
O material escolar era levado ao sítio pelo irmão, Ronildo, e em visitas semanais Erileusa recolhia as atividades realizadas para serem corrigidas pelos professores. Muitas vezes chegavam ao sítio coleções inteiras de livros didáticos, desde o sexto até o nono ano, que o menino prontamente devorava, sentado no chão por horas a fio.
 
Deste jeito, passou com facilidade nos últimos anos do Ensino Fundamental e acabou virando o “terror” de alguns
 
professores, que chegavam a tremer quando eram convidados a visitá-lo.
 
- Alguns diziam que não fazia sentido ir, porque o Ricardo sabia mais do que eles - brinca a diretora.
 
Finalmente em classe
 
Foi por meio de seu irmão que Ricardo conheceu a OBMEP. Naquela época, ainda moravam no sítio em Vacaria. Ronildo participou da primeira edição, em 2005, e ganhou uma menção honrosa, a única do município.
 
- Aquilo me provocou. Meu irmão foi uma pessoa marcante, porque fez a ponte entre mim e a escola, e depois me apresentou a OBMEP - lembra o rapaz.
 
Ele admite que não tinha noção do alcance do programa até conhecer seus números:
 
- Quando vi que havia 17 milhões de alunos participando, entendi o tamanho do desafio.
 
Quando ganhou sua primeira medalha, em 2006, não tinha internet, computador, nem celular em casa. Foi a diretora Erileusa que acessou a página da Olimpíada em sua própria casa e imprimiu a lista dos alunos premiados.
 
Somente em 2008 é que Ricardo começou a frequentar as classes tradicionais, quando mudou de colégio para a Escola Municipal Presidente Castelo Branco.
 
Ainda em 2006, o sucesso instantâneo na sua primeira participação da OBMEP chamou a atenção da prefeitura local, que alugou uma casa para a família no centro da cidade, perto do novo colégio onde o rapaz ganhou mais duas medalhas de ouro.
 
Devido à experiência na OBMEP, Ricardo foi convidado a dar palestras contando a sua história de superação das dificuldades impostas pela situação física, financeira e social.
 
Apesar das inúmeras apresentações, admite que até hoje fica nervoso quando tem que falar em público.
 
- Meu negócio é mesmo com os números, e não com as palavras - conta, encabulado.
 
Com o dinheiro das palestras e da bolsa de estudos recebida no Programa de Iniciação Científica Jr (PIC), Ricardo ajudou a família a sair da dependência do programa federal Bolsa Família e a comprar uma casa em 2010. A essa altura, ele estava ingressando no Ensino Médio, na Escola Maria Afonsina Diniz Macedo, onde ganhou duas pratas e um ouro.
 
Seu pai, Joaquim Oliveira, admite em um exemplo de humildade:
 
- Não sou eu que o ajudo, é Ricardo que me ajuda. Com o que ele recebe da bolsa, a gente compra produtos essenciais como leite, açúcar, sabão... Ele é a base da renda da casa até hoje - diz.
 
Quando Ricardo participava da Olimpíada, a coordenação escolar pedia que ele comparecesse à instituição para fazer as provas e deixar claro que ninguém o estaria “favorecendo”, como define a diretora. Ela queria eliminar qualquer suspeita de que, por fazer a prova em casa, o jovem tivesse a prova facilitada.
 
Com o tempo, ele começou a se tornar um “ícone”.
 
- Você acha que eu sou o Ricardo?” - provocavam os demais alunos, quando uma questão difícil era colocada no quadro, mesmo depois de ele já ter se formado no Ensino Básico.
 
- Tivemos um trabalho de adaptação quando Ricardo se formou. Ele ajudou muito dando estímulo aos colegas para seguirem seu caminho - lembra a diretora.
 
Estrada a trilhar
 
Atualmente, aos 26 anos, Ricardo mora com a família em um município vizinho chamado Cedro e cursa o quinto período de Tecnologia em Mecatrônica Industrial no Instituto Federal do Ceará (IFCE). E como sempre, não sossega enquanto não resolve uma questão. Já chegou a passar uma semana com um problema na cabeça.
 
- O complicado é quando a resposta vem durante um sonho.
 
Em sua opinião, os professores devem ser grandes motivadores e servir de guias, ajudando o aluno a se desenvolver por si só.
 
- A solução, às vezes, vem com o tempo. É preciso relaxar, ter paciência. Tanto a minha família quanto os professores que tive cumpriram muito bem o papel e me motivaram - reconhece.
 
No Ensino Médio, participou da criação do projeto “Racha Cuca”, pelo qual mais de 100 alunos do Ensino Fundamental de sua cidade aprenderam matemática olímpica.
 
Até participar da OBMEP, sempre que pensava no futuro, Ricardo imaginava algo grande atrapalhando.
 
- Subir na vida, ter um emprego… Eu buscava as possibilidades, mas não encontrava. Sabia que só havia um caminho: o estudo.
 
Cresceu ouvindo seus pais alertarem o irmão:
 
- É melhor segurar uma caneta do que uma enxada.
 
Mas e ele?
 
- Vivia num sítio isolado de uma cidade pequena, sem acesso nenhum à escola. Um garoto deficiente e de família pobre. Que visão de futuro eu podia ter naquela época? Nunca pensei chegar aonde cheguei... Ser premiado seguidamente na OBMEP, sair do sítio e agora fazer um curso de ensino superior.
 
Muita coisa mudou na vida de Ricardo desde os tempos do sítio em Vacaria, mas, em algumas horas de conversa, em sua nova casa, em Cedro, é possível perceber claramente que uma característica do rapaz continua a mesma: o desejo constante de adquirir conhecimentos, de estudar cada vez mais e ajudar a família.




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